Wednesday, August 17, 2022

Amor incondicional

 

          Ricardo e eu caminhávamos por uma rua menos movimentada da cidade quando passávamos diante de uma casa, havia uma jovem senhora, sentada na calçada, a manusear maquinalmente um livro. Como estávamos numa conversa agradável, eu não prestava atenção no mundo ao meu redor, eu tinha os olhos fitos no meu amigo que me relatava uma bela história dos seus antigos amores, quando de repente ele tocou-me, dizendo: - Augusto, veja aquela moça, na calçada, acabou de se mudar da capital fluminense, ela está aqui há poucos dias, sofreu uma grande decepção conjugal e pôs fim a um casamento de mais de quatro anos. Eu olhei para o meu amigo, ouvi atentamente toda sua narrativa sem interrompê-lo e, imediatamente, olhei para a moça e percebi que ela portava no rosto um certo ar de melancolia, parecia que algo muito sério tinha lhe acontecido. Era, na verdade, uma bela mulher, jovem, de mais ou menos vinte três anos, ainda plena de seiva e de mocidade.

            Depois de Ricardo me relatar toda a história da moça, fizemos uma pausa na conversa e fiquei imaginando e interrogando a mim mesmo: - Por que aquela moça tinha deixado o seu marido? Ou seria ele quem a tinha abandonado? Por que uma jovem tão bela, ainda no ardor da juventude, de aparência tão meiga era desprezada pelo esposo? Todos esses pensamentos me vinham à mente e me deixavam confuso. Após um prolongado silêncio e muitas lucubrações da minha parte, meu amigo, que tinha continuado a falar ininterruptamente, não conteve sua curiosidade e resolveu interrogar-me porque eu tinha ficado alheio à sua conversa, pediu-me para dizer alguma coisa. Em seguida eu retruquei, dei-lhe as minhas desculpas pelo silêncio e fui dizendo-lhe que era inacreditável, uma mulher tão bela, meiga e graciosa, quando ainda cheia de juventude, era abandonada! Aquilo era uma blasfêmia, uma infâmia! Ricardo olhou-me, em seguida, disse que eu falava como se a conhecesse e até mesmo como se eu a amasse há muito tempo. Eu nada respondi, mas em meu coração senti que meu amigo tinha razão. Na verdade, para amar não precisa ter conhecido a pessoa certa de uma longa data, basta um olhar, um golpe de vista, um coup de foudre  para que o amor se apodere de vez do nosso coração. Eu bem poderia começar a amar aquela mulher no mesmo instante em que a vi pela primeira vez, sentada na calçada, afinal, o amor não tem idade, não sofre as marcas físicas do tempo, só vivifica e dignifica a nossa alma, ele é como o diamante, é eterno se bem cultivado; é sabido que evitá-lo é uma tentativa vã, no mínimo o cultivamos no fundo da nossa alma quando ele é verdadeiro.

          Passados alguns dias, eu não deixava de pensar na jovem senhora, tinha sempre na mente a imagem do seu rosto, seus cabelos negros, compridos e ondulados a cobrirem suas espáduas nuas; seus olhos escuros e sua pele morena denunciavam a beleza típica da mulher dos trópicos. Sua boca era pequena, lábios meio carnudos e uns seios que pareciam dois belos pomos do oriente, daqueles de que fala Salomão nos seus cantos sagrados. Eu perguntava a mim mesmo: - por que eu não era um escultor para esculpi-la da forma mais graciosa possível? Ou mesmo um poeta para que o meu estro me inspirasse os mais belos cânticos de amor e dedicá-la os mais lindos versos? - Me senti um homem desprovido de talento para colocar a minha musa no seu devido lugar; sentia que havia em mim a musa, mas faltava-me a inspiração do vate. Senti uma tristeza indizível, dessas que o coração precisa viver e sentir para bem saber o significado, pois com os lábios não me era possível decifrá-la. Era o mal de amor que eu sentia pela primeira vez em meu coração no ardor dos meus vinte anos, um mal carregado de ansiedade e incertezas, pensando na possibilidade de encontrar a minha musa e ter uma desagradável surpresa.

          Já eram passados mais de vinte dias, eu ainda não sabia o nome da minha amada, quando inesperadamente Ricardo apareceu e perguntei-lhe o nome da jovem senhora, qual não foi minha surpresa, o meu amigo também não sabia, alegou-me que a conhecia apenas de ouvir o comentário dos vizinhos sobre a história relatada anteriormente. Então, tomei a decisão de ir até a casa da minha amante e usar a desculpa de pedir uma informação qualquer e ao mesmo tempo criar uma situação que nos permitisse falar os nossos nomes, e assim fazermos uma apresentação, talvez ficando frente à frente ela pudesse compreender a linguagem do meu olhar. Parti rumo a sua casa, consciente do que deveria fazer, minhas pernas tremiam e meu coração ficava cada vez mais acelerado à medida que eu me aproximava de sua casa; é assim que sente o coração de um jovem quando pela primeira vez vai ao encontro da mulher amada. Ao chegar, anunciei a minha presença soando a campainha, uma criança veio até a porta e, sorrindo, saudou-me com um bom dia; quando vi que uma criança vinha me atender logo imaginei que estava tudo mais fácil naquele momento, pois eu poderia simplesmente perguntar ao garoto o nome da minha amante. Foi o que aconteceu, interroguei o menino, e ao perguntá-lo pela jovem senhora de cabelos negros e longos que morava em sua casa, ele disse:  - É a minha tia Raquel que veio morar aqui, mas ela já se mudou para o outro lado da cidade e eu não sei informar ao senhor o endereço. Naquele momento agradeci o garoto e parti sem balbuciar mais nenhuma palavra, eu sabia que aquele era o primeiro passo para encontrá-la, mesmo vendo que a minha primeira busca tinha sido em vão. Mas não desisti, continuei na esperança de um dia encontrar essa mulher que tanto mexia com a minha imaginação, que tanto me deixava inquieto, mas agora pelo menos já sabia o seu nome, tudo era uma questão de tempo. No fundo, eu sabia que ela não deveria morar tão longe, que respirávamos os mesmos ares e que ela viria um dia acolher-me em seus braços, como a mulher que acolhe o amante com a mais doce ternura do coração. Eu senti que o mal de amor se apossava de mim, pela primeira vez eu amava alguém, uma mulher que eu nem conhecia, e eu pensava comigo mesmo: -como são tristes algumas formas de amar! Como eu poderia amar alguém que nem sabia da  minha existência! Há pessoas que amam e são correspondidas, outras amam sozinhas sem jamais haver reciprocidade de sentimentos, amam e sofrem a dor do silêncio, sendo esse o pior dos males. Assim era a minha vida em relação a Raquel, cheia de incertezas; o temor de que ela não aceitasse o meu amor ou mesmo de não mais encontrá-la me trazia sempre um sentimento de solidão e desespero.

          Um certo dia, quando voltava dos meus afazeres de estudante, parei numa pequena praça, era tardinha, o sol já tendia a mergulhar-se no ocaso, algumas crianças brincavam e cantavam certas modinhas pueris, quando de repente uma jovem surgiu dentre alguns arvoredos e meu coração bateu mais forte, não contive minha ansiedade e fui ter-me com ela, a qual mandou em seguida as crianças pegarem suas coisas para irem embora. Ao ver me aproximar, a jovem maviosamente olhou-me e em seguida perguntou-me: - O que o senhor deseja? Procura alguém? Eu, com a voz embargada respondi: - Sim, procuro uma pessoa, mas acredito que não vou encontrá-la por aqui. Agradeci a jovem e sai. Mais uma vez eu não conseguia ver minha amante, e a minha dor aumentava cada vez mais, era como se abrisse uma ferida em meu coração e não encontrasse o remédio para a cura, talvez, era como os ferimentos dos condenados pela arvore da mancenilha que ulcerava de lepra todos que sob ela ingenuamente repousavam.

          Certo dia fui convidado para um jantar na casa de Fabio, um grande amigo que morava num bairro um pouco mais afastado, o jantar estava marcado para as sete horas da noite e o amigo exigia a minha presença, alegando que eu não poderia faltar, o jantar era oferecido aos seus melhores amigos, portanto, contava com a minha presença. Como eu já conhecia a etiqueta da casa, providenciei-me chegar no horário marcado para não decepcionar o anfitrião. Ao chegar na casa de Fábio, Mariana, sua irmã, que nutria um certo carinho por mim, veio ao meu encontro, saudou-me e deu-me as boas-vindas com um belo sorriso. Senti que poderia buscar a minha felicidade em seu coração, mas lembrei-me que não poderia fazer qualquer promessa a uma moça tão especial como a irmã de meu grande amigo, ela era doce, meiga, sensível, inteligente, jovial e feliz, não poderia estar comigo enquanto meu coração estava a esperar pelo amor de Raquel que até então não sabia se quer da minha existência, muito menos dos meus sentimentos por ela. Já passava das sete horas, quando chegaram os últimos convidados, e para minha surpresa entre os convivas estava a jovem senhora, aquela que durante muito tempo eu procurara dia após dia e já tinha quase perdido as esperanças de encontrá-la, era a jovem senhora de cabelos longos que um dia me fizera sentir o amor verdadeiro em Minh’ alma, a qual me deixava agora sem palavras, era Raquel que eu acabava de encontrar. Com a chegada dos convidados, ordenaram que o jantar fosse servido, mas antes disso Mariana chamou Raquel e nos apresentou um ao outro sem deixar de tecer a ela alguns elogios sobre mim. Fizemos nossas apresentações e em seguida fomos nos servir do lauto repasto que nos aguardava na mesa. Sentei-me diante de Raquel, queria olhar nos seus olhos profundamente e fazê-la entender a linguagem do meu olhar. Surpreendentemente, ela já não tinha mais a aparência de uma mulher triste como da primeira vez que a vi, parecia agora, uma mulher alegre, feliz e amada. Começamos o jantar, em meio a tantas conversas eu permanecia calado, ouvindo a todos e apreciando a beleza de minha amante, a qual também pouco falava. Enquanto comíamos eu viajava em meus pensamentos, sonhava beijando aqueles lindos lábios e abraçando aquele corpo esbelto que na minha concepção fôra feito para os prazeres do amor. Fabio era um tagarela desatinado, não lhe faltava assuntos para falar e sempre com seu jeito elegante de tratar os amigos mais próximos, Ricardo também não o deixava falar sozinho, estava sempre nos fazendo rir de suas histórias hilariantes, num certo momento Fábio decidiu quebrar o meu silêncio com a sua curiosidade, dizendo: “Augusto, o que aconteceu? Você não balbuciou uma única palavra desde que chegaram os meus convidados, sabemos que a timidez andou longe de você, por tanto, meu caro amigo, diga logo o que houve, quem sabe não podemos ajudá-lo a sair do silêncio!”.

          Diante dos olhos de Raquel eu não sabia o que dizer, mas mostrei um sorriso e retruquei à pergunta do meu amigo, dizendo: - Não aconteceu nada, estou apenas seguindo a tradição e o sábio conselho dos provérbios de que quem ouve mais aprende mais. Mas minha resposta não convenceu a ninguém, todos perceberam a minha indiferença aos assuntos abordados durante o jantar e talvez a minha maneira de olhar para Raquel.

       Findo o banquete, tomei a iniciativa de falar com minha amante, senti que ali era talvez a minha única oportunidade de dizê-la tudo que se passava dentro de mim desde a primeira vez que a vi. Naquele momento eu sabia que nos lábios dela estava a minha sentença, não me importava o que ela iria dizer, eu esperava que fosse o melhor para o meu coração, afinal, era a primeira vez que nos encontrávamos e que nos era permitido falar. Mas é certo que o homem nem sempre é tão corajoso, mesmo quando se trata de sentimentos tão nobres como o amor, o qual justifica todo o encorajamento possível de um homem; o amor é algo que não se explica através dos lábios, é preciso sentir e viver; a explicação do amor é através do coração e dos atos. Diante de todas as incertezas, resolvi seguir os conselhos do velho Sêneca que dizia que quem não arrisca não é feliz, e que o maior erro do ser humano é ter medo, e sabemos que o medo pode nos roubar a felicidade mesmo quando essa bate à nossa porta. Pois bem, encorajado pelo amor incondicional que sentia por Raquel, tomei a iniciativa de dirigir-lhe a palavra, fui ter-me com ela, a qual estava a olhar o jardim, mas antes que eu lhe falasse, ouvi uma voz meiga e suave chamando pelo meu nome, era Mariana que me pedia para lhe traduzir uns versos dos tradicionais sonetos shakespearianos, bem carregados daqueles recursos linguísticos medievais que caíram em desuso com o passar dos séculos, mas que ainda são lidos pelos amantes da poesia clássica.

But if the while I think on thee, dear friend,

All losses are restored and sorrows end.

Generosamente traduzi os versos para ela, dando-lhe a seguinte tradução: 

“Mas enquanto eu penso em ti, oh querida amiga,

Todas as perdas são restauradas, e as tristezas finitas”

Mariana me agradeceu com um sorriso angelical sem deixar de elogiar a minha pobre capacidade de tradutor de versos neoclássicos. Raquel também não deixou de elogiar-me pelo que eu acabara de fazer, perguntou-me se eu era poeta, eu lhe afirmei que não, que Deus não me dera esse privilégio divino de fazer uso da palavra para entreter um leitor, que eu era apenas um filomático, um admirador das belas artes, e que amava muito a poesia. Ela discordou da minha afirmação de que eu não era poeta e disse: - Você tem um olhar peculiar, cheio de enigmas, como se estivesse lendo a aura do seu interlocutor, o que não é comum a todos os mortais, é como se escondesses em tua alma uma tristeza indizível, assim como os poetas, que buscam incessantemente a felicidade e não a encontram. Eu ouvi a sua breve narrativa e não ousei dizê-la nada o contrário, no meu íntimo concordei com cada palavra que ela dissera. Afinal, qual homem ousa contestar as palavras de uma mulher quando seu coração bate forte de amores por ela? E eu sabia que meus sentimentos por Raquel não eram paixão, mas um amor reconfortante que eu não sabia explicar; aliás, amor e paixão são duas coisas bem antagônicas, o primeiro é pródigo de sentimentos nobres, de reflexão e doçura, ao passo que o segundo é aquilo que chamamos de loucura, de insensatez do coração. Quando o fogo da paixão supera o amor, tudo perde sua essência e beleza, pois a paixão não é nada mais do que a cegueira atônita do coração e o amor é a sensação de bem-estar da alma, é a vida em sua plenitude. Essa era a sensação que eu sentia ao lado de minha amante, ali, naquele momento, era como se eu acordasse de um sonho dantesco chegando ao Paraíso, despertando-me nos braços da minha Beatriz.

       Como o leitor pôde observar, Mariana não me deixou a sós com Raquel um só instante, o que me impossibilitou dizê-la tudo que eu sentia por ela, mas ao menos me foi possível tê-la junto de mim por alguns momentos e poder sentir o seu perfume suave como o sândalo do oriente e o afago de suas palavras lisonjeiras que me deixaram ligeiramente envaidecido; aliás, quando se ama, basta algumas palavras com  elogios da amante querida para elevar o nosso coraçao a um prazer indelével;  amor verdadeiro nada exige, nem tampouco é opróbrio como a paixão. E como bom cavalheiro eu não poderia fazer com que Mariana sentisse que a sua presença ali não fôsse por mim desejada; seria uma incongruência de minha parte, mesmo porque eu sentia que se não fôsse por Raquel eu poderia encontrar a minha felicidade em seu coração. 

Quinze dias depois do jantar em casa de Fábio eu sentia um desejo de encontrar minha amante, ela continuava a burilar meus pensamentos e as noites de insônia voltavam a fazer parte do meu cotidiano, por mais que eu tentasse esquecê-la, o que eu sentia por ela era mais forte do que tudo. Tive a idéia de ir até a sua casa para contar-lhe tudo que se passava comigo, que o amor não correspondido por ela era a razão da grande tristeza escondida em Minh ‘alma como ela havia mencionado no dia do jantar.

Pois bem, mais uma vez, a filosofia do velho sábio romano me impelia a ir ter com Raquel. Era uma tardinha de maio, calma e monótona, o sol estava quase a sumir se no horizonte e uma suave brisa quebrava a calmaria das árvores e espalhava o suave perfume das flores que ornavam a praça; eu parti rumo a sua casa, e passando por aquele ambiente meio bucólico decidi sentar-me por um instante para presenciar a despedida do Astro rei e apreciar o limiar da noite. Ali, sentado num banquinho, solitário como os toscos anacoretas e beduínos nos desertos, meditando sobre as incertezas do amor, como o jovem elegíaco latino que sofria por Lésbia, eu sentia uma dor no meu coração a qual não conseguia descrever; nesse momento virei-me para um jardim que dava para outra rua, e para minha surpresa, vi, ao longe, um belo casal que também admirava a despedida do sol daquela tarde; era uma cena divina, um quadro celeste, dois amantes que se deleitavam com a hora suave do morrer do dia. Ambos pareciam muito felizes vivendo aquele momento mágico de eterna poesia; os últimos raios de sol formavam um colorido sem igual nas montanhas que cercavam a cidade e davam um ar de ternura e muito romantismo. Como era maravilhoso ver os dois tão felizes! Como desejei ter ali Raquel ao meu lado para também vivermos a plenitude do nosso amor! O rapaz calmamente beijava os dedos da sua amada, e ela suavemente acariciava o rosto do seu amante, era como se eles vivessem num outro mundo, onde falasse somente a linguagem da ternura e do amor. Ao presenciar todo o cenário descrito, a imagem de Raquel ficou ainda mais viva em minha mente, e no mesmo instante levantei-me para partir, pois, precisava completar o percurso da minha jornada incerta, e ao levantar-me olhei fixamente para o casal e logo não quis acreditar no que via, olhei ainda uma vez para me certificar, percebi que a linda mulher era Raquel que acariciava o rosto do seu amante e o beijava com toda a ternura do seu coração. Naquele momento chorei e mil vezes maldisse a minha dor e a minha sorte, como o cantor de Lésbia exortando aos deuses desesperadamente para que o socorressem na hora extrema do seu sofrimento.

O dei, si vestrum est misereri, aut si quibus unquam

extremam iam ipsa in morte tulistis opem,

me miserum auspice et, si vitam puriter egi,

eripite hanc pestem perniciemque mihi,

quae mihi subrepens imos ut torpor in artus

expulit ex omni pectore laetitias. 3

 

Chegando em casa, entrei na minha alcova e não mais abri a porta naquela noite, tudo me era insípido, sem nenhum sentido em minha vida; eu não tinha desejo de falar com ninguém, para mim era como se a vida tivesse deixado de existir. Naquele momento odiei os homens, odiei o mundo, eu desejava morrer ali mesmo para não ter o desconsolo de ver Raquel nos braços de outro homem. É muito difícil para quem ama ver e aceitar os carinhos da mulher amada pertencerem a outro homem; é algo que está no inconsciente do ser humano, pois nós somos ainda tão egoístas que não sabemos aceitar a felicidade dos outros se dela não fizermos parte. Quão pobre de espírito pode ser o homem! Quanta falta de grandeza ainda possui a humanidade para o completo entendimento da vida! Como as paixões podem ser tão fortes a ponto de dominar a razão e levar um ser humano à loucura! Fiquei toda a noite em claro, não consegui dormir, cada vez que tentava conciliar o sono via a imagem de Raquel acariciando e beijando o rosto de seu amante, e assim fiquei até o albor da aurora quando todos já despertavam do sono.

          Fiquei alguns dias sem ânimo para sair, mergulhado na minha tristeza que parecia não ter fim. Meus amigos me convidavam para ir às festas, achando que talvez assim eu poderia esquecer toda a tempestade emocional que me arrastava ao desespero e à solidão, aliás essa é a prédica do ser humano, mostrar que indo aos ambientes noturnos e se envolver com as cortesãs mais faceiras mostra que um desprezo amoroso não abalou seu emocional; ora, quanta ignorância consigo mesmo! Isso é apenas uma forma de tentar esconder dos outros o seu sofrimento, pois ninguém é capaz de esquecer um grande amor de um instante para outro, é preciso que não ame para que isso aconteça ou então a pessoa tenta mentir para si mesmo,

          Num certo dia, saí para um passeio pela cidade, senti que precisava de novos ares para me recobrar as forças e encontrar coragem para conversar com Raquel, precisava dizê-la do meu amor, já não me importava mais colocar em risco o relacionamento dela com o seu amante, para mim me interessava encontrar a minha felicidade que na minha concepção tinha de ser com ela. Chegando ao velho coreto da praça, onde no passado os músicos vinham ali para fazer suas apresentações musicais em dias de festas cívicas, me aproximei de um banco que ficava debaixo de uma frondosa árvore e me sentei por um instante para descansar, quando ouvi uma voz chamando pelo meu nome, eu olhei e percebi a presença de Mariana que chegando sentou-se ao meu lado e foi logo dizendo: - Eu precisava te ver, pois me disseram que você não estava bem, eu gostaria de saber o que aconteceu, mas te vendo assim saudável me sinto mais tranquila. Eu lhe respondi dizendo que não tinha nada mesmo, que tinha sido apenas um probleminha passageiro, coisas sem muita importância, mas ela olhando nos meus olhos começou a inquirir-me:

- Augusto, eu sou sua amiga, conte-me o que lhe causa tanta tristeza, desde aquele dia do jantar em minha casa eu pude perceber o quanto você estava diferente, já não é mais aquele moço alegre, brincalhão e feliz que conheci. Saiba que nem todos os segredos devemos evitar de compartilhar com um amigo, principalmente quando se trata de sentimentos, eu sinto que algo dentro de ti dilacera o teu coração, não sofra sozinho meu amigo, deixe-me ser útil na sua vida ao menos uma vez.

- Não é nada Mariana, é apenas fruto da sua imaginação, sou a mesma pessoa alegre que você conhece, são fases da vida que nos trazem certas mudanças, a vida é uma ciranda que está sempre girando e nos oferecendo etapas difíceis para provar a nossa capacidade de crescimento como ser humano. Mas ela estava decidida a arrancar alguma coisa de mim a qualquer custo e minha resposta não foi nada convincente, meu semblante denunciava toda a agonia plantada em meu coração, e ela foi mais uma vez enfática no seu interrogatório:

- Diga-me Augusto, você ama? Diga-me, não aguento mais ver tanta tristeza e tanto sofrimento num rosto que eu vi sempre sorrindo, que só transmitiu alegria às pessoas, e agora só vejo tristeza e um ar de desespero que me corta o coração; vamos, dê-me a oportunidade de te ajudar a encontrar a felicidade, pois nada me deixaria mais contente do que te ajudar a ser feliz; conte-me tudo, não tenha medo de ser feliz.

Eu ouvi as palavras de Mariana mudarem de suave a um tom mais áspero, mas cheias de sinceridade, ela falava com os olhos quase em lágrimas, eu não contive a minha emoção e comecei a chorar em seus braços, a ponto de molhar o seu vestido na altura dos ombros, pois eu sentia que no fundo ela também sofria do mesmo mal. Chorávamos ao mesmo tempo, ela me abraçou ternamente, acolheu-me em seus braços e beijou meu rosto, pedindo para que eu não sofresse em vão, sua voz tão meiga e carinhosa me deixava ali sem palavras; eu sentia que ela me amava como eu amava Raquel. - Que coisa meu Deus, por que as pessoas têm de sofrer umas pelas outras? Pensava eu, envolvido nos braços da irmã de meu melhor amigo, e ficamos abraçados por alguns instantes, a chorar quase convulsivamente.

          Após sair do enleio dos seus braços olhei nos olhos de Mariana, eu podia perceber o quanto ela também amava, havia em seus olhos um brilho especial, misturado com as lágrimas que molhavam o seu rosto angelical; havia uma ternura em seus olhos que eu jamais vira em um ser humano; eu podia perceber a pureza e a sinceridade dos seus sentimentos de menina apaixonada. E respondendo sua pergunta, eu disse: - Mariana, por que me faz tal pergunta? Acaso acha que sofro por amor? Ela disse: - Quem não sofre por amor? Afinal, esse é o mal dos séculos, é preciso ser uma pessoa insensível para não sofrer disso, dizem até que o amor é uma loucura, se isso é verdade eu também estou entre os loucos; eu sei que você está sofrendo por alguém que você ama e ainda não se manifestou; não quero saber as razões, nem te condenar por tal, afinal, não sou juíza para lhe julgar, mas gostaria de ser alguém que pudesse ao menos amenizar o teu sofrimento. Sei que nenhum amigo é capaz de pensar esse mal que a cada dia te conduz pelos caminhos sombrios do desespero e da angústia, mas conheço alguém que certamente vai poder abolir do teu peito toda essa tristeza; desculpe a minha sinceridade meu amigo, mas seu mal se chama Raquel, e somente ela poderá curar esse mal que está te arrastando à destruição de si mesmo.

- Por que você diz isso? Eu a perguntei:

- Augusto, as palavras podem ser mentirosas, mas o olhar de uma pessoa retrata os seus sentimentos sinceros, os olhos são o espelho da alma, podemos até fingir com palavras e gestos, mas o olhar tira a máscara com a qual tentamos nos cobrir para esconder o que sentimos, e no dia do jantar em minha casa eu pude observar como você olhava para Raquel, eu percebi a profundidade e a dimensão do amor que você sente por ela, são daqueles amores que não se explica, que só quem ama é capaz de entender, e eu te entendo porque sei o que é amar quem não percebe o meu amor. Peço-lhe desculpas pela minha sinceridade, não é minha intensão abrir mais ainda a ferida do teu coração, mas falo o que sinto; sei que você a ama mais do que tudo nesse mundo, e não tente dizer não porque estará enganando a si mesmo; saiba que muito me custa dizer isso, mas quando se ama é preciso ser sincero, o amor não aceita mentiras, muito menos hipocrisia, o amor é a verdade e a fidelidade em sua plenitude; por tanto, ouça a voz do teu coração, atenda-o e acabe logo com esse sofrimento. Vendo Mariana falar assim logo compreendi que ela me pedia para ir falar com Raquel, mesmo me amando como eu imaginava, ela abria mão de sua felicidade em prol da minha. Ela me dava claro exemplo de que o amor não admitia falsidade, nem hipocrisia; era uma verdadeira lição de humanidade num coração feminino. Ela demonstrava que amar estava além da obcecada idéia de possessividade comum entre os seres humanos, só mesmo uma pessoa muito nobre seria capaz de tão grandioso gesto.

          Seguindo os conselhos de Mariana, continuei a minha caminhada rumo a casa de Raquel, estava decidido a ouvir a voz do meu coração, exatamente como Mariana havia sugerido. Chegando na casa de minha amante, minhas pernas tremiam, o coração disparado, parecia querer saltar de dentro do peito, era como se fôsse um amor de adolescente que vai pela primeira vez ao encontro do primeiro amor. Ao chegar, notei a sua presença, a qual estava sentada numa cadeira a manusear um volume de poesias, exatamente como da primeira vez que a vi. Ela veio ao meu encontro com um sorriso encantador; ali eu via a perfeição diante de mim; seus cabelos longos eram agitados pelo vento que também fazia com que eu sentisse o suave aroma do seu perfume. Convidou- me para entrar e foi logo dizendo que se sentia honrada com a minha presença em sua casa, fazendo me sentir mais a vontade para aquela conversa que seria talvez a mais difícil de minha vida. Ao apertar a sua mão procurei não perder o impulso e a coragem de falar os meus sentimentos, e fui logo dizendo: - Vejo que conheci uma leitora inveterada, uma devoradora de livros, pois a primeira vez que te vi você tinha um livro sob as mãos, e hoje a cena se repete, isso prova a grandeza de suas palavras quando naquele dia do jantar me perguntaste se eu era poeta, e depois fez um comentário digno de alguém que lê bons autores.

- Nada, apenas gosto de ler historias fantasiosas, os escritores têm essa dimensão grandiosa de criação, criam verdadeiros universos e nos transportam a um estado de alma surpreendente, e dependendo do texto podemos melhorar ou piorar como pessoas, por isso tenho o hábito de variar minhas leituras para ver quem me influenciará em alguma coisa. Mas você falou que a primeira vez que me viu eu estava com um livro sob as mãos, nós nos conhecemos na casa de Mariana, e eu não me lembro de ter livro algum em minhas mãos naquele dia.

- Sim, mas a primeira vez que eu te vi não foi no dia do jantar, foi na casa da sua irmã Carmen, isso já tem mais de dois anos, como você pode ver, eu te conheço já de muito tempo, e sempre desejei ter a oportunidade de merecer alguns minutos da sua atenção, como agora nesse momento. Espero que eu não esteja sonhando, porque se for um sonho não quero acordar nunca mais.

- Meu caro Augusto, falando assim parece que você já me conhece mesmo de longa data, e não me faça imaginar que você esteja a me cortejar já no nosso segundo encontro, entendo que qualquer mulher se sentiria feliz em ouvir tal afirmação vinda de um moço educado e inteligente como você, saiba que em tempos modernos não se ouve mais elogios tão inspirados assim, posso dizer que você é quase uma exceção, acredite. Ela falou isso e foi logo sorrindo, me chamando de jovem erudito, poeta e exímio tradutor de Shakespeare, dizendo que admirava a minha competência em traduzir o melhor da poesia inglesa de uma maneira tão natural e que só outro poeta poderia ter a maestria de traduzir tão bem em versos a genial poesia shakespeariana. Eu ouvi atentamente o seu comentário, e quando ela terminou eu disse-lhe mais uma vez que eu não era poeta, mas ficava feliz com seus comentários, afinal, traduzir poemas dessa escola literária não é mesmo uma tarefa fácil, precisa de conhecimento do idioma e amor pela poesia e que suas palavras me deixavam envaidecido; na verdade era eu quem estava diante de uma mulher ímpar, que além de bela, tinha um espírito crítico e dona de um conhecimento literário pouco comum no universo feminino; dispensei também o termo erudito, pois eu não passava de um simples estudante que amava a beleza das artes. E após um breve diálogo, eu tentava encontrar coragem para lhe dizer a razão da minha visita inesperada, mas minha amante falava sem parar, a nossa conversa se transformara num monólogo porque só ela falava e eu apenas ouvia; o que eu fazia era apenas admirar a sua beleza e concordar com seus comentários improvisadamente bem colocados sobre o mundo das letras. Eu ficava vislumbrado com suas colocações sobre filosofia e poética, era encantador vê-la falar de cultura, de nomes que lhe eram familiares, como: Goethe, Ronsard, Sapho, Dante e Camões. Ficamos a conversar por mais de meia hora e eu não conseguia dizê-la a razão da minha súbita visita porque ela me fazia ouvir o seu monólogo o tempo inteiro; eu não queria fazê-la parar de falar porque de sua boca saiam palavras inteligentes e destilava um conhecimento que me surpreendia ouvi-lo da boca de uma mulher ainda jovem no ardor dos seus vinte cinco anos; num dado momento, ela deixou de monologar e curiosamente me fez relatar a razão da minha presença inesperada em sua casa. Calmamente, relatei a ela como a vi pela primeira vez e tudo que vivi até aquele momento de estarmos ali, juntos, a conversar e a falar de cultura.

          Tudo que falei foi para Raquel muito natural, afinal, ela já havia lido o meu olhar no dia do jantar na casa de Mariana, mas ficou atônita de saber tudo que vivi por sua causa. Após ouvir a minha confissão, minha amante suspirou fundo, abaixou a cabeça e emudeceu por alguns instantes sem olhar em meu rosto, ficou quase estática; suas mãos tremiam, e em seguida ela olhou seriamente para mim me fazendo imaginar que naquele momento eu tinha conseguido o maior êxito da minha juventude amorosa. Depois de um breve silêncio ela me surpreendeu dizendo: - Augusto, dizer que não gosto de ti seria enganar a mim mesma, mas dizer que te amo seria também enganar a ti e a mim, mas saiba que me sinto lisonjeada de saber que moro no teu coração, mas você ainda é tão novo, que futuro eu teria amar um moço na tua idade, quando tem a seus pés as moças mais belas da sociedade? Eu retruquei dizendo que deixasse as convenções sociais, além disso a nossa diferença de idade era de apenas dois anos, isso não importaria, que o mais importante era o verdadeiro amor que poderia frutificar a cada dia entre nós. Ela respondeu dizendo que mesmo com o amor de poeta que eu demonstrava sentir por ela, o nosso amor era impossível até mesmo porque ela amava Salim, o jovem que eu tinha visto beijando-a no banco da praça durante o pôr do sol relatado anteriormente.

          Naquele momento eu me altercava comigo mesmo e me perguntava as razões de tantos sofrimentos por causa de uma mulher, se tudo que eu sofrera teria sido em vão, ou se aquela mulher merecia todo aquele sofrimento que estava me levando ao abismo mais profundo dos meus sentimentos. Todas essas questões vinham em minha mente. Como poderia eu no vigor dos meus vinte três anos ser um homem sozinho,  um sonhador fracassado no amor! Fiquei por algum momento a olhar minha amante, a apreciar a sua beleza e vi que uma lágrima corria dos seus olhos. Senti que havia em suas palavras uma certa contradição, como se seu coração pedisse uma coisa mas ela devia fazer outra; perguntei-lhe o que havia e porque chorava diante de mim, se por acaso havia algo que a impedia de me amar. Ela gentilmente beijou meu rosto e disse: -Meu amigo, meu querido e sábio amante, saiba que alguém tão próximo de ti demonstra por você um amor invejável como o que você demonstra por mim, tenho certeza que no dia em que você olhar nos olhos dela vai entender a nobreza dos sentimentos que ela nutre por ti e será, certamente, o homem mais feliz do mundo. Eu a respondi dizendo que invejava o ismaelita que a tinha como mulher, e que na aurora da minha existência eu não passava de um sonhador infeliz; que eu abandonaria tudo para ter ao menos um beijo da única mulher que eu amava. Ela mais uma vez olhou-me e com a voz trêmula balbuciou: - O que acaba de me dizer soa como a voz de um anjo em meus ouvidos, é algo que jamais imaginei ouvir de um homem depois de tudo que já vivi; suas palavras soam como um bálsamo para minha alma, por favor, não me faça sofrer mais do que já sofro, o amor é uma coisa que nos faz bem, mas também nos faz sofrer se por ele prejudicarmos aqueles a quem queremos bem. Nesse momento percebi que ela falava de Salim e Mariana, duas pessoas por quem ela tinha um grande apreço.

          Após uma certa delonga na nossa conversa, Raquel sentou-se ao meu lado e lentamente pegou meu rosto entre suas mãos, e com lágrimas nos olhos foi maviosamente me abraçando; unimos os nossos rostos, apertamos as nossas mãos, enlaçamos os nossos corpos e eu pude em fim sentir o coração dela bater junto ao meu. Ficamos abraçados por um longo período sem dizer nenhuma palavra, nossos corações demonstravam a pureza de um sentimento que eu seria incapaz de descrever; era um amor indizível, chorávamos e ao mesmo tempo sentiamos uma felicidade suprema. Eu mergulhava meu rosto nos seus longos cabelos soltos, dos quais exalava o mais suave perfume, e eu acariciava minha amante com a ternura que seus sentimentos me exigiam; eu quiz dizer alguma coisa, mas ela imediatamente me pediu para que deixasse que os nossos corações falassem por nós, e assim ficamos por algum tempo entregues ao sabor da paixão e do amor. Durante o período que ficamos abraçados, chorávamos igualmente todo o tempo, aquele choro indescritível que talvez o leitor não consiga entender, mas chorávamos de amor; ali nós vivemos a verdadeira felicidade, através da qual eu esquecia todo o sofrimento vivido até então, éramos os amantes mais felizes do mundo. Naquele instante eu perdia a pureza da minha infância, toda a ingenuidade que um homem carrega desde o seu nascimento até descobrir os desejos do corpo; mas eu podia pelo menos dizer que a perda da minha pureza de homem tinha sido entregue à mulher que eu amava com o mais belo e puro dos sentimentos, sem a vulgaridade dos garotos que se prostituiam nos bordéis da vida para ter o prazer de dizer que em tenra idade já eram verdadeiros homens. Após um longo silêncio ali vivido e tudo ter acontecido de forma inesperada, Raquel ainda me apertando suavemente em seus braços, com lágrimas nos olhos disse: - Meu querido poeta, desculpe-me, não era minha intensão deixar que isso tudo acontecesse, sei que errei, não me perdôo de não ter contido a fúria dos meus desejos, não pense que sou essa mulher fácil e fútil que fui, não sei como eu pude me deixar levar pelos seus encantos, quero que saiba que o que acabei de fazer não me deixa contente porque estou traindo a confiança de duas pessoas que amo, mas também o fiz porque estou sentindo um amor que nunca vivi; eis ai uma grande contradição amorosa. Em seguida eu a pedi que não se culpasse, pois o que acontecera entre nós fôra algo indelével, uma coisa divina, sagrada aos olhos dos que sabem o que é o amor; não fomos vulgares, nem levianos, apenas dois amantes que verdadeiramente se amavam e Deus não nos condenaria somente porque amávamos. O amor é algo que não se pode evitar, ele chega até mesmo sem percebermos e ai se interioriza no nosso coração e não há quem possa tirá-lo de dentro do peito. Após aquele momento divino, sentamo-nos juntos e continuamos a falar de amor. Ali eu estava de pleno acordo com Propértio que ao descrever o amor de forma verdadeira sentenciou em sua elegia: “Nocte una quivis vel deus esse potest; bem, para mim bastaram alguns minutos, eu era o homem mais feliz do mundo, realizado no amor, eu tinha a mulher que amava e agora poderia tê-la para sempre e sermos felizes como eu sempre sonhara, pelo menos eu imaginava. Ela ainda continuava cheia de dúvidas, dizia que precisava pôr fim ao seu romance com Salim, e agora não sabia como olhar nos olhos de Mariana que além de amiga lhe confessava sempre o amor que devotava a mim, e dizia ter certeza de que um dia eu a olharia e a amaria com todo o ardor do meu coração. Raquel pediu-me paciência e um tempo enquanto ela terminasse tudo com o ismaelita, eu acatei e respeitei a sua decisão, afinal, eu queria tê-la comigo e sabia que ela me amava; ser feliz com ela era só o que eu desejava.

          Passados dois dias que eu havia estado na casa de Raquel, eu contava as horas para vê-la novamente, cada minuto longe dela era uma eternidade, mas meus estudos e o seu trabalho não nos permitiam encontrar cotidianamente e mesmo ela receava uma surpresa desagradável em nossos encontros, por isso precisava que ela estivesse completamente livre para que fôssemos felizes. Eu sentia uma angústia no peito de não poder ir todos os dias à casa de minha amante, eu temia perdê-la a todo instante e altercava comigo mesmo querendo saber a razão daquele sofrimento sem fim; será que tudo aquilo era justo? Coisas do ser humano, nós escolhemos os nossos próprios caminhos e não aceitamos que neles existam pedras e espinhos para dificultarem a nossa passagem, queremos tudo da forma mais fácil sem que haja a luta ou esforço para recebermos merecidamente a recompensa das nossas ações. Quando eu estava isolado nessas lucubrações alguém bateu na minha porta, eu abri, era Mariana que gentilmente me visitava e me fazia abrir o coração para lhe demonstrar a minha felicidade. Seus olhos me pareciam tristes, eu podia sentir em meu coração que ela estava sofrendo. Convidei-a para sentar, ela disse que estava muito feliz de me ver tão bem; que a alegria estava estampada em meu rosto e que isso a fazia também feliz, mas seu semblante me delatava uma tempestade que ruía o seu coração; eu não tinha coragem de dizê-la que tinha conquistado o coração de Raquel, seria fazê-la sofrer ainda mais. Mas existem pessoas cuja grandeza humana não sabemos descrever, mesmo percebendo que eu estava bem com Raquel ela sorria, conversava, me abraçava e me deixava feliz. Mariana fazia o possível para não me demonstrar sua profunda tristeza, conversava de uma forma que eu a desconhecia, e de repente eu pedi para que ela me dissesse o que a deixava aflita, e subitamente ela disse:

 - Augusto, você me conhece bem, sabe quando algo está me deixando em pânico, pois bem, vou te contar tudo; existe algo que preciso te falar, eu soube de tudo que aconteceu entre você e Raquel, e fico feliz que sua angústia tenha terminado, mas te peço para que evite qualquer encontro com Salim. Estou aqui a pedido de Raquel porque ela não teve como vir, mas me pediu para te alertar para que não vá visitá-la por esses dois dias, espere um pouco mais até que passe a ira de seu ex amante, ele não se conformou de tê-la perdido, anda dizendo que foi traído e promete lavar a sua honra caso ela o tenha trocado por outro. Por tanto, eu gostaria que você contivesse os teus anseios e não a procurasse tão logo; não tenha medo de perdê-la, ela te ama mais do que tudo, ela me confessou tudo que aconteceu entre vocês e me disse também que te ama de uma forma que nunca amou ninguém, seja paciente e ouça o meu pedido para que não tenha surpresas desagradáveis.

          Depois que Mariana narrou sua história eu retruquei e lhe disse que havia esperado mais de dois anos para ter o amor daquela mulher, como eu poderia agora não procurá-la por um simples capricho de um homem com orgulho ferido? Aquilo era impossível fazer, era preciso que ela não me amasse para que eu não a procurasse. Mas Mariana começou a chorar, me abraçou e implorou para que eu não cometesse tal loucura dizendo que se eu fizesse aquela maluquice eu estaria colocando em risco tanto a minha vida quanto a de Raquel. Mas eu estava obstinado a não atendê-la, e que se ela tinha mesmo ido até minha casa só para me fazer aquele pedido, ela poderia esquecer, pois eu não iria atendê-la. Ela segurou a minha mão entre as suas e carinhosamente me disse: -

Augusto, se queres ir vá, eu só estou aqui porque gostaria de evitar uma desgraça com o único homem que silenciosamente amei nessa vida, que mesmo não me amando eu quero vê-lo feliz com a mulher que ama. O amor que te tenho é tão grande como o que tu sentes por Raquel, não penses que sou egoísta, vocês são meus amigos e eu os amo, não gostaria que uma tragédia caísse sobre a vida de ambos. Mais uma vez eu via outro exemplo de grandeza daquela moça, pedi-lhe desculpas pelas palavras duras dirigidas a ela. Como diz o poeta da Legenda dos séculos, a mulher comove a todos com a lágrima, e diante de um pedido tão comovente eu a garanti que não faria aquilo, iria me comportar como um covarde, mas iria conter os meus instintos e os meus arroubos de amor. Mariana se acalmou, e eu não tinha coragem de olhar em seus olhos, sua confissão pesou demais no meu coração, era a primeira vez que uma mulher me fazia uma declaração de amor com tal profundidade de sentimento. Eu disse-lhe que se não amasse tanto Raquel nós poderíamos ser felizes pois eu também a amava, mas eu não poderia lhe dar esperanças e ela bem sabia a razão, ela era uma moça muito gentil para que eu não fosse sincero.

          Fiquei algumas semanas sem encontrar minha amante, tudo para atender um pedido de alguém que eu também amava, coisas que só os que amam sabem sentir, mas não definir com palavras. Para aumentar ainda mais a minha ansiedade e evitar de procurar Raquel, atendendo a um convite de Ricardo, fui passar duas semanas no sítio da sua família que ficava há três léguas da cidade. Era um belo lugar, e naquela vida bucólica durante o dia eu saia para pescar, tomar banho de rio e caminhar pela floresta virgem, e na volta aproveitava para ler alguma coisa. A noite sempre em casa, a conversar, e o senhor Martins, pai de Ricardo, sempre nos contava belas estórias de Trancoso, ele nos divertia e nos deixava felizes com os seus serões sertanejos. No sertão as pessoas têm essa tradição maravilhosa de entretenimento familiar, normalmente a noitinha, antes de dormirem, alguém de mais idade se coloca a narrar contos bem engraçados, e os demais ficam em silêncio absoluto, apenas riem muito quando o conteúdo da narrativa lhes exige boas risadas: é algo que passa de uma geração a outra e os mais jovens devem memorizar tais estórias para que a tradição não caia no esquecimento. Nessa fazenda, mais precisamente nas proximidades da casa, havia um grande monte, e todos os dias eu o escalava para de lá apreciar o pôr do sol, e do ápice daquela elevação montanhosa eu me lembrava do poeta, o célebre amante de Elvira,  quando sofria a solidão da sua juventude e, nas horas mágicas do ocaso, cantava o seu Isolamento compondo suas meditações no  grande monte das redondezas de Milly; essas recordações me faziam lembrar de Raquel que era ali o antagonismo da minha vida, por ela ser a minha felicidade e o meu sofrimento; a felicidade porque nós nos amávamos, e o sofrimento devido a distância que nos separava durante aqueles dias de vida bucólica que eu levava. A vista panorâmica daquela serrania era um verdadeiro colírio aos olhos de quem passava; o verde da floresta nas colinas ao ir de encontro com os derradeiros raios de sol formava um colorido de rara beleza. Ricardo as vezes vinha em minha companhia, e lá ficávamos horas a conversar, a falar do futuro após os estudos e até mesmo dos amores frustrados de cada um, e numa das nossas conversas ele começou a falar a razão de ter me convidado para estar no sitio da sua família por um período de duas longas semanas; era um pedido de Mariana para que eu não procurasse Raquel por aqueles dias, ela temia pela minha vida e a de Raquel, coisas de quem ama com tal proteção. Ele narrou toda a história e em seguida me perguntou se eu não gostava de Mariana, afinal, ela era a moça mais bela que por ali se conhecia e se eu não estava enganando a mim mesmo pensando que amava Raquel, mas fui bem seguro na minha resposta dizendo que tinha um grande carinho por Mariana, mas Raquel era a mulher que eu amava. Nesse momento tive uma grande surpresa, meu amigo confessou-me que me fazia tais perguntas porque ele amava Mariana, mas precisava estar certo de que eu não a amasse. Disse que a amava demais, mas tinha receios de tentar conquistá-la porque sabia que o amor que ela sentia por mim era tão forte quanto o que ele nutria por ela. - Ricardo, disse-lhe eu, vocês são livres um para o outro, eu me sentiria feliz se ela correspondesse ao amor que você sente por ela, vocês são dois amigos que amo, merecem ser felizes, seria também a minha felicidade vê-los casados e se amando pela eternidade.

          Passadas duas semanas que vivia naquele ambiente bucólico, eu estava de volta para reassumir as minhas obrigações de estudante e, claro, rever minha amante. Voltamos para a cidade, tudo me parecia normal e sem novidades, senti que devia visitar Raquel imediatamente. A noitinha eu parti rumo a sua casa, meu coração acelerado me impelia a apressar o passo para chegar lá e abraça-la o quanto antes; ao anunciar a minha chegada, ela veio ao meu encontro com um sorriso angelical, era o sorriso mais belo e encantador que poderia existir, ela usava um vestido longo que a deixava ainda mais feminina, e no mesmo instante eu a acolhi em meus braços, era como se já houvesse um ano que não nos encontrávamos. Ficamos por alguns minutos abraçados ao lado de uma janela que estava parcialmente aberta, nesse instante eu ouvi um pequeno barulho como se denunciasse a presença de alguém nas proximidades, e em seguida ouvi o grito de uma voz feminina que dizia: -Não faça isso! Não faça isso, por favor! Reconheci que era a voz de Mariana. Em seguida vi Salim postado diante da janela com um sorriso macabro, ele nos olhava e no mesmo instante exclamou: - Traidores! E sem que tivéssemos tempo de fugir, ele disparou uma arma contra nós, a bala trespassou meu peito e foi direto ao coração de Raquel. Caímos os dois por terra já perdendo completamente os sentidos, mas ainda ouvi dos lábios de minha amante a seguinte frase: - Meu amor, não me deixe morrer!

          Cinco dias depois eu acordei no leito de um hospital em completo delírio, arrodeado de médicos e enfermeiras, e ao meu lado estava Ricardo com os olhos cheios de lagrimas, a me consolar e creio que tentando também consolar a si mesmo. Eu o perguntei o que acontecera, mas ele disse que eu estava muito fraco, não podia forçar minha voz; que eu precisava descansar e no momento certo ele me contaria tudo com mais detalhes. Eu perguntei sobre Raquel, mas ele disse que ela estava bem e que eu não precisava me preocupar com ela, que tentasse recobrar as minhas forças para sair dali o quanto antes, me disse um até breve e saiu. Depois da saída de Ricardo, fiquei a imaginar o que acontecera finalmente, eu não conseguia me lembrar de nada, o médico veio e me parabenizou pela minha rápida recuperação e disse que tão logo eu poderia ir para casa, mas eu me olhava e via aparelhos colocados em mim; perguntei ao médico o que tinha acontecido, eu sabia que algo ruim tinha se passado comigo, mas não me lembrava de  nada, eu delirava de febre e sentia muita dor no peito; a todo instante o médico media minha temperatura e pedia a enfermeira para não me deixar sozinho um só instante. No dia seguinte amanheci sem febre e os delírios tinham cessados; foi ai que me lembrei de tudo que tinha acontecido.

            Ao recobrar meus sentidos comecei a gritar avidamente, era como se eu visse o rosto hediondo daquele árabe com o seu sorriso de sarcasmo diante da janela, a lembrança do seu rosto me aterrorizava, era como se a sua ameaça ainda existisse; a enfermeira veio até mim e começou a me pedir para ficar calmo, mas eu perdi o controle dos meus impulsos e queria saber de Raquel; a enfermeira me pedia para ter calma sob pena de piorar meu estado de saúde, pois eu ainda estava muito fraco, e que eu tinha amigos que estavam cuidando de mim. Nesse momento Ricardo entrou no quarto e começou a me pedir para ficar calmo, pois ele estava ali para me ajudar, senão poderia comprometer seriamente a minha recuperação. Em seguida ele começou a conversar, e eu percebendo no rosto de meu amigo que ele sofria uma grande tempestade em seu coração, eu pedi para ele me falar de Raquel, onde ela estava e se ja tinha melhorado do ferimento., Ricardo conversou e tentou inventar histórias para mim, tentando dizer que ela estava bem, mas senti que ele me escondia alguma coisa; pedi que me contasse tudo, que não me escondesse a verdade. No mesmo instante ele começou a chorar inconsolavelmente, me pedia desculpas por não conter suas lágrimas diante de mim, mas que o choro lhe fazia bem e precisava desabafar, nesse momento ele disse: - Augusto, espero que tu sejas forte o bastante para ouvir a malfadada notícia que vou te dar, Raquel está morta, também Mariana. Quando Salim pegou a arma para atirar em você e Raquel, Mariana lançou-se sobre ele para salvar vocês dois, mas depois de atirar em você e Raquel, ele matou Mariana e em seguida disparou a pistola contra si mesmo e morreu junto com as suas vítimas.

          A narrativa do meu amigo me deixou perturbado, eu não sabia o que dizer, chorava e lastimava a minha sorte macabra, era como se o meu mundo tivesse chegado ao fim. Mas eu estava vivo para sofrer eternamente, Raquel partira para a eternidade levando consigo a minha felicidade, compreendi então que a vida só tem valor quando procuramos vivê-la intensamente, é uma dádiva divina que recebemos para que cresçamos como pessoas e possamos dar o melhor de nós mesmo na busca da felicidade. Alguns meses depois com a minha saúde restabelecida, eu preferia ter morrido naquele episódio fatal ao lado de minha amante. Recuperei a saúde, mas não mais o meu coração, esse foi enterrado junto com Raquel e Mariana, e percebi que entre as três pessoas que se amavam apenas eu fui infeliz.

Notas e traduções;

Oh deuses, se a vossa misericórdia ainda existe,

Ou se vós concedeis alguma dádiva

A alguém na hora da sua morte,

Olhai para a minha miséria, et se levei uma vida pura,

Arrancai de mim esse mal pernicioso

Que desliza nos meus membros como um torpor

E leva toda a alegria do meu coração. (Tradução minha)

(Catulo)